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sábado, 1 de setembro de 2012

Por mudanças no currículo do Ensino Básico


É antiga a discussão sobre o currículo do Ensino Básico. Vários problemas foram apontados, citemos alguns: 1. distância do conteúdo em relação a realidade do aluno, 2. padronização dos conteúdos, impondo uma determinada leitura da realidade, de acordo com a ideologia dominante, 3. defasagem do conteúdo em relação às descobertas científicas mais recentes,  4. hierarquia dos conteúdos, 5. ordem de apresentação dos conteúdos para os estudantes. As respostas a este questionamento vieram na forma de atualização de livros didáticos com teorias mais recentes, flexibilização curricular para permitir conteúdos regionais, sucessão de orientações ideológicas na definição dos currículos, busca de trans e interdisciplinaridade, inclusão de novas disciplinas, realocação de cargas horárias de disciplinas etc. No entanto, por mais que o debate tenha feito pensar, a estrutura do currículo do Ensino Básico manteve as mesmas disciplinas e a mesma concepção da formação inicial que os alunos deveriam receber. Não houve nenhuma mudança estrutural profunda, somente paliativos. Deste modo, o problema não foi resolvido e os currículos seguem engessados no século XIX, embora estejamos vivendo numa sociedade do século XXI.

Propor uma mudança radical do currículo pode ser arriscado. Já posso perceber as vozes raivozas que  vão se levantar contra a mudança e a favor da manutenção da estrutura atual, para a qual concorre toda a formação universitária dos cursos de licenciatura. Uma mudança real no currículo do Ensino Básico demandará uma mudança real na formação dos professores para o Ensino Básico. Isto envolve carreiras estabelecidas, acordos corporativos, verdades inquestionáveis e toda espécie de vício que prejudica o novo e sustenta a decadência por dezenas de anos, independente do prejuízo que isto possa causar às gerações atuais e futuras.

Mudar pode ser doloroso. Uma mudança real de currículo levará de volta aos bancos escolares milhares de professores. Um motivo a mais para a mudança, no meu entender! Um motivo a menos, na visão dos professores acomodados e dos governantes de visão curta que não querem investir em educação. Conto, no entanto, com o apoio entusiasmado das novas gerações de professores e dos professores sedentos por saber, como deveriam ser todos.

Com estas breves considerações iniciais, indicarei um histórico ainda mais sucinto destas reflexões. Elas começaram quando eu era professora do Ensino Fundamental e foram implantados os ciclos. Tínhamos a liberdade de formular um projeto pedagógico para a escola e decidir sobre disciplinas e carga horárias que comporiam os currículos. Sugeri que organizássemos os conteúdos e tempos por área e que as salas de aula fossem ambientes de estudos destas áreas, cito o projeto apresentado:
  
a.       "a sala de Linguagens Tecnológicas Contemporâneas (...)
b.      a sala de Linguagens Socioculturais (...)deve possuir estantes para a permanência na própria sala de livros paradidáticos, obras literárias e livros didáticos das disciplinas de História, Geografia, Ciências, Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Música, Artes, jornais e revistas; deve possuir um aparelho de som para a reprodução de CDs;
c.       a  sala de Matemática deve possuir estantes para abrigar os livros de matemática e de história da matemática e jogos que permitam o aprendizado de matemática;
d.      a sala de Linguagem Corporal deve ser adaptada para a prática de ginástica, dança, teatro e dinâmicas interativas"[1]

Naturalmente, os equipamentos descritos para a sala de Linguagens tecnológicas eram os mais atualizados na época e defasados hoje, quando já estamos na era dos smartphones e tablets.

A proposta era de compreender a educação como linguagem e os seus conteúdos como linguagens próprias. Um pouco disto está na compreensão do ENEM hoje e não é mais tão revolucionário como foi 10 anos atrás.

Ainda corroboro da visão da educação como sobretudo o ensino de linguagens e cada área do conhecimento como uma linguagem que precisa ser conhecida/ interpretada. 

Naquela proposta, embora mexesse no queijo das pessoas, ainda procurava preservar as antigas áreas, até porque esta era uma proposta para uma escola e não de mudança do sistema e da própria formação dos educadores. Portanto, os professores de Linguagens Sócioculturais seriam os professores das várias áreas de ciências humanas, sociais e arte que atuam no Ensino Fundamental .  Os professores de Linguagem Corporal seriam não somente os de Educação Física, mas também os que pudessem trabalhar com teatro e dinâmicas corporais. Os professores de Linguagens tecnológicas contemporâneas seriam os professores com formação em qualquer área do ensino superior que tivesse familiaridade com estas tecnologias. Os professores de Matemática seriam os professores de Matemática e também os de História, pois se considerou importante entender a história da matemática.  Nesta proposta, um professor formado em educação artística poderia estar trabalhando com Linguagens Culturais ou com Linguagem Corporal, um professor de História poderia estar trabalhando com História da Matemática, um professor da área de  "Ciências Naturais" poderia estar trabalhando com Linguagens Tecnológicas Contemporâneas. Havia uma implosão dos feudos, uma obrigatoriedade de compreender o conhecimento como interdisciplinar e transdisciplinar, uma necessidade de trabalhar em equipe, um impositivo de estudar,  pesquisar e reformular planos de ensino e planos de aula. Passados dez anos, esse projeto é atual  e cada vez mais os educadores compreendem a educação como linguagem e o saber como domínio destas linguagens.

Minha proposta atual não perde este foco, mas vai mais longe para pensar os currículos. Até hoje, a orientação dos currículos do ensino fundamental é para a ciência básica. Vejam que estes currículos têm as disciplinas de História, Sociológica, Ciências Naturais, mas não tem Ciências aplicadas, como Direito, Administração, Comunicação, Nutrição, Turismo, Gastronomia, Farmácia etc.  Os professores são convidados a minimizar esta falha inserindo problemas  mais ligados a aplicabilidade dos conhecimentos das áreas básicas. 

Recentemente, foi proposta a reformulação do Ensino Médio (ver o PCNEM) em torno de áreas[2], um grande avanço ainda em implementação. Provas como ENEM e os vestibulares cobram cada vez mais esta capacidade de aplicar os conhecimentos teóricos na solução de problemas concretos, mas os currículos, sobretudo do Ensino Fundamental, organizado segundo a LDB de 1996 e os PCNs de 1998, continuam privilegiando as ciências básicas e não as aplicadas.

Minha proposta é dar o passo a frente e assumir estas mudanças de forma clara no currículo adotando novas disciplinas no Ensino Fundamental e Médio, que efetivamente conectem este aluno com o mundo atual. O nosso Ensino Básico está organizado como se todos os alunos estivessem se preparando para a continuidade dos estudos nas universidades, onde, finalmente, aplicariam todas aquelas informações acumuladas nos longos 12 anos de Ensino Básico. A realidade é que a maioria destes alunos não irá para universidades (e a sociedade nem tem o que fazer com tantos bacharéis) e os que irão, vão rever todas as bases da área que escolheram.  

Além disso, os alunos têm sido submetidos a todas as causas ideológicas que exigem incorporar novos conteúdos ao currículo, daí os estudos indígenas, africanistas, da causa LGBT, igualdade de gênero e afins que se impõem com pouca efetividade na sociedade e na formação dos estudantes, afinal  a sociedade continua discriminadora e não cor de rosa como esta escola descolada da realidade pretende ser. O que todos estes alunos precisam, indo ou não para a universidade, é de desenvolver o raciocínio lógico, a capacidade de aprendizagem, método, disciplina (sem isso não é possível ser bem sucedido em coisa nenhuma), o domínio da língua nativa, uma formação para a cidadania ( e aqui se impõem os estudos éticos e valorativos que contemplarão esta busca de construir com os alunos valores igualitários e não discriminatórios) e conhecimentos úteis para sua inserção no mercado de trabalho, pois, tirando aquela parcela ínfima dos 1% mais ricos que vão herdar uma fortuna e nunca precisarão trabalhar, todos os outros precisam!

Logo, reelaboro a minha antiga proposta, embora mantendo as 4 áreas, com cargas horárias uniformemente distribuídas entre elas (em uma escola de tempo integral, como seria o desejável, seriam 8h para cada área e 8h para um projeto de pesquisa ou extensão desenvolvido pelos alunos com um professor orientador), mas agora incluindo as ciências aplicadas.

Áreas
Conteúdos (devem incluir  uma História destas linguagens)
Linguagens Tecnológicas Contemporâneas
Informática básica (principais softwares utilizados em empresas e órgãos governamentais), Linguagem computacional, Web design, Redes Sociais, Marketing  (formação dos professores da equipe: Comunicação, Engenharia, Computação, Sociologia, Antropologia, Física, Astrofísica etc.)
Linguagens Culturais
Direito, Gestão, Ética, Ciências ambientais, Língua Portuguesa (formação dos professores da equipe: Licenciatura em Direito, Administração, Filosofia, História, Geografia, Biologia, Letras, Sociologia, Antropologia, Turismo etc.)
Linguagens Matemáticas
Matemática, Música, Física e Química (formação dos professores da equipe: Licenciatura em Matemática, Física, Química, Música, Engenharia e História, para trabalhar com História da matemática, da música e das ciências)
Linguagem Corporal
Atividade esportiva, dança, teatro, higiene e nutrição (Licenciatura em Educação Física, Teatro, Dança, Nutrição, Gastronomia)
Projeto
Iniciação científica no Ensino Básico

Todos sabemos que a diferença entre um bacharel e um licenciado são as disciplinas voltadas para a formação do professor que um licenciado precisa cursar. Logo, bacharéis de cursos que ainda não formam professores poderiam ser licenciados obtendo uma formação complementar. Uma das grandes revoluções do ensino no século XIX foi exatamente levar para a escola profissionais altamente qualificados que ainda não eram professores. Porque um engenheiro, um administrador, um antropólogo, não podem dar aula no ensino básico? Basta cursar as disciplinas específicas da escola de educação, fazer um estágio supervisionado e... bem vindos à sala de aula.

Esta escola vai ser muito mais significativa para os alunos e para a sociedade. Professores trabalhando em equipe, um ambiente de pesquisa e produção de conhecimento conectado com a vida contemporânea, com as demandas do mercado profissional.

Naturalmente, é preciso muito mais para termos a escola que queremos. São vários aspectos a serem abordados. Este blog apenas abordou a questão curricular. E já mexeu em muita casa de marimbondo!







[1] FERREIRA, Maria Lúcia. SÉCULO XXI: A EDUCAÇÃO SOB O PRISMA DA LINGUAGEM: Por uma reformulação do currículo e da prática pedagógica. Belo Horizonte: EMAVV, 2002.
[2] Ver: MEC. RESOLUÇÃO Nº 2, DE 30 DE JANEIRO 2012. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=15134&Itemid=1071

Um comentário:

Unknown disse...

Existe o tradicional problema que atinge não somente a área da educação, o problema dos interesses. O mesmo que não permite que carros elétricos seja prioridade das concessionarias, ou que investimentos em eficientes transportes públicos sejam feitos. Como já citado, “Isto envolve carreiras estabelecidas, acordos corporativos, verdades inquestionáveis e toda espécie de vício que prejudica o novo e sustenta a decadência por dezenas de anos, independente do prejuízo que isto possa causar às gerações atuais e futuras”. Enfim, seria gratificante que o modelo proposto revigorasse o cabresto que atualmente é colocado nestes alunos com o nome de ensino básico. Se assim prosseguíssemos com o ensino fundamental e o médio (que em minha opinião deveria ser técnico como é em alguns lugares), talvez chegassem menos alunos as vezes semianalfabetos nos cursos superiores.