É antiga a discussão sobre o currículo do Ensino Básico.
Vários problemas foram apontados, citemos alguns: 1. distância do conteúdo em
relação a realidade do aluno, 2. padronização dos conteúdos, impondo uma
determinada leitura da realidade, de acordo com a ideologia dominante, 3.
defasagem do conteúdo em relação às descobertas científicas mais recentes, 4. hierarquia dos conteúdos, 5. ordem de
apresentação dos conteúdos para os estudantes. As respostas a este questionamento
vieram na forma de atualização de livros didáticos com teorias mais recentes,
flexibilização curricular para permitir conteúdos regionais, sucessão de
orientações ideológicas na definição dos currículos, busca de trans e
interdisciplinaridade, inclusão de novas disciplinas, realocação de cargas
horárias de disciplinas etc. No entanto, por mais que o debate tenha feito
pensar, a estrutura do currículo do Ensino Básico manteve as mesmas disciplinas
e a mesma concepção da formação inicial que os alunos deveriam receber. Não
houve nenhuma mudança estrutural profunda, somente paliativos. Deste modo, o
problema não foi resolvido e os currículos seguem engessados no século XIX,
embora estejamos vivendo numa sociedade do século XXI.
Propor uma mudança radical do currículo pode ser arriscado.
Já posso perceber as vozes raivozas que
vão se levantar contra a mudança e a favor da manutenção da estrutura
atual, para a qual concorre toda a formação universitária dos cursos de
licenciatura. Uma mudança real no currículo do Ensino Básico demandará uma mudança
real na formação dos professores para o Ensino Básico. Isto envolve carreiras
estabelecidas, acordos corporativos, verdades inquestionáveis e toda espécie de
vício que prejudica o novo e sustenta a decadência por dezenas de anos,
independente do prejuízo que isto possa causar às gerações atuais e futuras.
Mudar pode ser doloroso. Uma mudança real de currículo
levará de volta aos bancos escolares milhares de professores. Um motivo a mais
para a mudança, no meu entender! Um motivo a menos, na visão dos professores
acomodados e dos governantes de visão curta que não querem investir em
educação. Conto, no entanto, com o apoio entusiasmado das novas gerações de
professores e dos professores sedentos por saber, como deveriam ser todos.
Com estas breves considerações iniciais, indicarei um
histórico ainda mais sucinto destas reflexões. Elas começaram quando eu era
professora do Ensino Fundamental e foram implantados os ciclos. Tínhamos a
liberdade de formular um projeto pedagógico para a escola e decidir sobre
disciplinas e carga horárias que comporiam os currículos. Sugeri que
organizássemos os conteúdos e tempos por área e que as salas de aula fossem
ambientes de estudos destas áreas, cito o projeto apresentado:
a.
"a sala de Linguagens Tecnológicas Contemporâneas
(...)
b.
a sala de Linguagens Socioculturais (...)deve possuir
estantes para a permanência na própria sala de livros paradidáticos, obras
literárias e livros didáticos das disciplinas de História, Geografia, Ciências,
Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Música, Artes, jornais e revistas; deve
possuir um aparelho de som para a reprodução de CDs;
c.
a sala de
Matemática deve possuir estantes para abrigar os livros de matemática e de
história da matemática e jogos que permitam o aprendizado de matemática;
d.
a sala de Linguagem Corporal deve ser adaptada para a
prática de ginástica, dança, teatro e dinâmicas interativas"[1]
Naturalmente, os equipamentos descritos para a sala de
Linguagens tecnológicas eram os mais atualizados na época e defasados hoje,
quando já estamos na era dos smartphones e tablets.
A proposta era de compreender a educação como linguagem e os
seus conteúdos como linguagens próprias. Um pouco disto está na compreensão do
ENEM hoje e não é mais tão revolucionário como foi 10 anos atrás.
Ainda corroboro da visão da educação como sobretudo o ensino
de linguagens e cada área do conhecimento como uma linguagem que precisa ser
conhecida/ interpretada.
Naquela proposta, embora mexesse no queijo das pessoas,
ainda procurava preservar as antigas áreas, até porque esta era uma proposta
para uma escola e não de mudança do sistema e da própria formação dos
educadores. Portanto, os professores de Linguagens Sócioculturais seriam os
professores das várias áreas de ciências humanas, sociais e arte que atuam no
Ensino Fundamental . Os professores de
Linguagem Corporal seriam não somente os de Educação Física, mas também os que
pudessem trabalhar com teatro e dinâmicas corporais. Os professores de
Linguagens tecnológicas contemporâneas seriam os professores com formação em
qualquer área do ensino superior que tivesse familiaridade com estas
tecnologias. Os professores de Matemática seriam os professores de Matemática e
também os de História, pois se considerou importante entender a história da
matemática. Nesta proposta, um professor
formado em educação artística poderia estar trabalhando com Linguagens Culturais
ou com Linguagem Corporal, um professor de História poderia estar trabalhando
com História da Matemática, um professor da área de "Ciências Naturais" poderia estar
trabalhando com Linguagens Tecnológicas Contemporâneas. Havia uma implosão dos
feudos, uma obrigatoriedade de compreender o conhecimento como interdisciplinar
e transdisciplinar, uma necessidade de trabalhar em equipe, um impositivo de
estudar, pesquisar e reformular planos
de ensino e planos de aula. Passados dez anos, esse projeto é atual e cada vez mais os educadores compreendem a
educação como linguagem e o saber como domínio destas linguagens.
Minha proposta atual não perde este foco, mas vai mais longe
para pensar os currículos. Até hoje, a orientação dos currículos do ensino
fundamental é para a ciência básica. Vejam que estes currículos têm as
disciplinas de História, Sociológica, Ciências Naturais, mas não tem Ciências aplicadas,
como Direito, Administração, Comunicação, Nutrição, Turismo, Gastronomia,
Farmácia etc. Os professores são
convidados a minimizar esta falha inserindo problemas mais ligados a aplicabilidade dos
conhecimentos das áreas básicas.
Recentemente, foi proposta a reformulação do Ensino Médio (ver o PCNEM) em torno de áreas[2], um grande avanço ainda em implementação. Provas como ENEM e os vestibulares cobram cada vez mais esta capacidade de aplicar os conhecimentos teóricos na solução de problemas concretos, mas os currículos, sobretudo do Ensino Fundamental, organizado segundo a LDB de 1996 e os PCNs de 1998, continuam privilegiando as ciências básicas e não as aplicadas.
Recentemente, foi proposta a reformulação do Ensino Médio (ver o PCNEM) em torno de áreas[2], um grande avanço ainda em implementação. Provas como ENEM e os vestibulares cobram cada vez mais esta capacidade de aplicar os conhecimentos teóricos na solução de problemas concretos, mas os currículos, sobretudo do Ensino Fundamental, organizado segundo a LDB de 1996 e os PCNs de 1998, continuam privilegiando as ciências básicas e não as aplicadas.
Minha proposta é dar o passo a frente e assumir estas mudanças de forma clara no currículo adotando novas disciplinas no Ensino Fundamental e Médio, que efetivamente conectem este aluno com o mundo atual. O nosso Ensino Básico está organizado como se todos os alunos estivessem se preparando para a continuidade dos estudos nas universidades, onde, finalmente, aplicariam todas aquelas informações acumuladas nos longos 12 anos de Ensino Básico. A realidade é que a maioria destes alunos não irá para universidades (e a sociedade nem tem o que fazer com tantos bacharéis) e os que irão, vão rever todas as bases da área que escolheram.
Além disso, os alunos têm sido submetidos a todas as causas ideológicas que exigem incorporar novos conteúdos ao currículo, daí os estudos indígenas, africanistas, da causa LGBT, igualdade de gênero e afins que se impõem com pouca efetividade na sociedade e na formação dos estudantes, afinal a sociedade continua discriminadora e não cor de rosa como esta escola descolada da realidade pretende ser. O que todos estes alunos precisam, indo ou não para a universidade, é de desenvolver o raciocínio lógico, a capacidade de aprendizagem, método, disciplina (sem isso não é possível ser bem sucedido em coisa nenhuma), o domínio da língua nativa, uma formação para a cidadania ( e aqui se impõem os estudos éticos e valorativos que contemplarão esta busca de construir com os alunos valores igualitários e não discriminatórios) e conhecimentos úteis para sua inserção no mercado de trabalho, pois, tirando aquela parcela ínfima dos 1% mais ricos que vão herdar uma fortuna e nunca precisarão trabalhar, todos os outros precisam!
Logo, reelaboro a minha antiga proposta, embora mantendo as
4 áreas, com cargas horárias uniformemente distribuídas entre elas (em uma
escola de tempo integral, como seria o desejável, seriam 8h para cada área e 8h
para um projeto de pesquisa ou extensão desenvolvido pelos alunos com um
professor orientador), mas agora incluindo as ciências aplicadas.
Áreas
|
Conteúdos (devem incluir uma
História destas linguagens)
|
Linguagens Tecnológicas Contemporâneas
|
Informática básica (principais softwares utilizados em empresas e
órgãos governamentais), Linguagem computacional, Web design, Redes Sociais,
Marketing (formação dos professores da
equipe: Comunicação, Engenharia, Computação, Sociologia, Antropologia, Física,
Astrofísica etc.)
|
Linguagens Culturais
|
Direito, Gestão, Ética, Ciências ambientais, Língua Portuguesa
(formação dos professores da equipe: Licenciatura em Direito, Administração,
Filosofia, História, Geografia, Biologia, Letras, Sociologia, Antropologia,
Turismo etc.)
|
Linguagens Matemáticas
|
Matemática, Música, Física e Química (formação dos professores da
equipe: Licenciatura em Matemática, Física, Química, Música, Engenharia e História, para trabalhar com História da matemática, da música e das ciências)
|
Linguagem Corporal
|
Atividade esportiva, dança, teatro, higiene e nutrição (Licenciatura
em Educação Física, Teatro, Dança, Nutrição, Gastronomia)
|
Projeto
|
Iniciação científica no Ensino Básico
|
Todos sabemos que a diferença entre um bacharel e um
licenciado são as disciplinas voltadas para a formação do professor que um
licenciado precisa cursar. Logo, bacharéis de cursos que ainda não formam
professores poderiam ser licenciados obtendo uma formação complementar. Uma das
grandes revoluções do ensino no século XIX foi exatamente levar para a escola
profissionais altamente qualificados que ainda não eram professores. Porque um
engenheiro, um administrador, um antropólogo, não podem dar aula no ensino
básico? Basta cursar as disciplinas específicas da escola de educação, fazer um
estágio supervisionado e... bem vindos à sala de aula.
Esta escola vai ser muito mais significativa para os alunos
e para a sociedade. Professores trabalhando em equipe, um ambiente de pesquisa
e produção de conhecimento conectado com a vida contemporânea, com as demandas
do mercado profissional.
Naturalmente, é preciso muito mais para termos a escola que
queremos. São vários aspectos a serem abordados. Este blog apenas abordou a
questão curricular. E já mexeu em muita casa de marimbondo!
Tweet
[1]
FERREIRA, Maria Lúcia. SÉCULO XXI: A EDUCAÇÃO SOB O PRISMA DA LINGUAGEM: Por
uma reformulação do currículo e da prática pedagógica. Belo Horizonte: EMAVV,
2002.
[2]
Ver: MEC. RESOLUÇÃO Nº 2, DE 30 DE JANEIRO 2012. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=15134&Itemid=1071