Páginas

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Bibliotecas

A minha primeira biblioteca foi a da minha casa. Ainda sem saber ler, ganhei três coleções de livros, uma delas trazia mais duas coleções como brinde, logo, ganhei cinco coleções! Aprender a ler era o meu sonho e, finalmente, eu estava indo a escola, onde uma professora perdeu logo a paciência com a minha incapacidade. Aos sete anos, eu sequer sabia escrever meu nome, todos os meus colegas sabiam. Não sei se algum deles tinha a mesma paixão que eu por ler e escrever, se algum deles havia esperado com tanta ânsia pela oportunidade de ir a escola e ter quem lhes ensinasse. A turma riu quando eu disse que estava ali porque não sabia e tinha ido aprender. Para mim, era lógico; para eles, ridículo. Poucos dias depois, veio a sala um vendedor de livros e fez a propaganda das coleções que ele estava vendendo. Cheguei em casa muito entusiasmada e pedi as coleções: "O Novo Tesouro da Juventude", "As mais belas histórias da Bíblia" e os "Contos dos Irmãos Grimm". Assim iniciei minha biblioteca, com cerca de 60 livros, incluindo aí os livros da Coleção "Clássicos da Literatura Mundial" (30 livros de brinde!).


Um dia, na casa de um colega de escola, a mãe dela falou: vamos pegar livros na biblioteca. E fomos para a Biblioteca Pública da Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Eu estava com 9 anos de idade, sabia ler e escrever. Estava lendo os livros da escola, os livros da minha pequena biblioteca, revistas, fotonovelas, jornais e qualquer coisa que houvesse para ler, mas naquele dia eu encontrei uma porta para uma outra dimensão. Estantes e estantes de livros. Duas bibliotecárias maravilhosas que me adotaram imediatamente. Fiz a minha ficha e levei para minha mãe assinar. Voltei no dia seguinte com a ficha assinada para poder pegar livros emprestados. Naquela biblioteca eu descobri coisas que não estavam no currículo escolar, de Bob Dylan a Sartre, passando pelos impressionistas. Eu me sentia verdadeiramente especial consultando as coleções especiais (em geral, os livros de arte no andar superior do prédio antigo). Em poucos anos, adquiri o hábito de ler um livro na própria biblioteca e levar outros dois para ler em casa, voltando na semana seguinte para o mesmo processo.


Minha terceira biblioteca foi de uma faculdade. Estava na sétima série e a professora de português pediu um trabalho sobre História da Literatura. Não achei em casa material suficiente, fui a Biblioteca Pública e também não achei suficiente o que encontrei. As bibliotecárias me informaram que as bibliotecas das faculdades eram de livre acesso e eu poderia fazer minhas pesquisas em qualquer uma delas. Fui e pesquisei, mas não podia pegar livros emprestados, a consulta era só no local, somente alunos poderiam levar livros para casa. Foi como ter voltado ao primeiro ano de escola e todos os alunos pudessem ler e escrever e eu não. Fiz a minha pesquisa, gostei muito dos livros que consultei, tanto que queria mesmo era levar para casa!

Alguns anos se passaram até que eu fosse aprovada no vestibular e fosse estudar no antigo prédio da FAFICH. Naquele prédio, haviam duas bibliotecas, a do primeiro andar, para todos os cursos e uma no oitavo andar, de filosofia. A do oitavo andar era uma preciosidade. Embora fazendo outros cursos, aquela era a minha biblioteca favorita. Tinha também a Biblioteca Central, no campus da Pampulha, mas eu fui poucas vezes lá. Continuei com o antigo hábito de ler por ler, ler sem estar no programa da escola, ler por acaso, pegar o livro numa instante e ler sem ter estado procurando por nada específico.

Ao longo dos anos, minha biblioteca pessoal foi se transformando. Naturalmente, os livros dos Irmãos Grimm, que haviam sido os preferidos na infância, anos depois eram vistos como memória e entulho. Não sabia se guardava, em respeito àquelas memórias, ou se descartava, para abrir espaço para outros. Novas coleções foram adquiridas: "Obras completas de Sigmund Freud", "Os Pensadores", "Grandes Nomes da História Universal". Outros autores passaram a ser favoritos: J. D. Salinger, Roberto Drummond, Machado de Assis, Rimbaud, William Carlos William e, sobretudo, novos filósofos. Na infância eu lera Voltaire, Rousseau e Descartes. Na juventude, ainda na biblioteca Luis de Bessa (aquela da Praça da Liberdade), descobrira Jean-Paul Sartre. Na faculdade, era Sartre ainda que me fascinava, mas lia também outros autores e, fazendo o curso de História, buscava diariamente as estantes de filosofia. Comprava livros de literatura, de história e de filosofia. Um belo dia, chamei o dono de um sebo e vendi por ninharia boa parte da minha biblioteca. Precisava de espaço para novos livros. Tenho até hoje os Contos dos Irmãos Grimm. É preciso reservar um lugar para a memória de como tudo começou.

Fazendo doutorado, viajei aos Estados Unidos em busca de obras sobre Sartre. Nos anos 90, publicava-se mais sobre Sartre em língua inglesa do que em sua língua original. Em solo americano, consultei três bibliotecas: a Biblioteca Pública de Nova York, a da Universidade de Princeton e uma biblioteca pequenina na cidade de Bradley Beach, onde morei por um ano. Todas três me fascinaram. A de Nova York, porque tinha tudo lá, consegui cópias dos artigos que não encontrava em lugar algum e até conferi se eles tinham o meu livro publicado no Brasil... tinham! Na de Princeton, encontrei um acervo inacreditável. Até então, eu não sabia que uma biblioteca pudesse ser tão rica, vivi novamente a experiência da menina de 9 anos entrando na Biblioteca Luis de Bessa. Não podia levar emprestado, mas podia fazer cópias, fiz tantas que por fim a funcionária parou de me cobrar e simplesmente copiou tudo que eu queria. Mas a minha maior surpresa foi com a biblioteca de Bradley Beach.



Eu estava morando em Bradley Beach e ainda precisava de algumas obras que não estavam a venda. Pensei que teria de voltar a Princeton, mas ao ver aquela Library a um quarteirão da minha casa resolvi entrar e conhecer melhor. Quem sabe eles teriam algum dos livros e revistas acadêmicas que eu procurava? De todo modo, teriam literatura e eu poderia ler algum autor novo, descobrir um livro, estas emoções que uma biblioteca nos reserva... Era uma biblioteca muito pequena, não parecia ter muita coisa e não tinha. Não tinha nenhum dos livros ou revistas que eu precisava, mas a bibliotecária me perguntou: "você quer que eu peça de outra biblioteca"? Eu olhei para ela meio incrédula. Por anos eu insisti na UFMG para trazerem de outras bibliotecas da própria UFMG os livros que eu precisava (quando estava na graduação), ou de outras universidades no Brasil (quando estava no doutorado) e, por um motivo ou outro, aguardava inutilmente ou nem aguardava, informada de pronto que não seria possível. Com certo desdém e a experiência de quem passou por isso, falei: "bem, se você puder conseguir..." Ela perguntou se poderia ficar com a minha lista. Sim, claro, era apenas uma cópia. Peguei livros de literatura americana e fui para casa. No dia seguinte, recebi uma ligação perguntando quais livros seriam prioridade. Combinei de ir pessoalmente entregar uma lista em ordem de prioridades para que eles pudessem solicitar na medida de minha capacidade de consulta e empréstimo. Ok! Nas semanas seguintes todos os livros da minha lista foram chegando de diversas outras bibliotecas. A única limitação é que eu só podia levar para casa 3 livros de cada vez, portanto, o ritmo foi o meu ritmo de leitura ou cópia... Quando voltei para o Brasil tinha muitos livros comprados e também um tesouro em cópias de obras que não estavam mais sendo publicadas, mas que eram essenciais para a minha tese. Uma pequena biblioteca havia se tornado uma Princeton, porque tinha aquela e várias outras na sua rede de empréstimos! Desejei que um dia fosse assim no Brasil, mas passados 10 anos, isto ainda não é realidade por aqui.

Nos últimos 10 anos, as bibliotecas se tornaram virtuais. Uma consulta bibliográfica ao acervo de qualquer biblioteca universitária no mundo ocidental pode ser feito através do site da mesma, com um sistema de buscas infinitamente mais eficiente do que as velhas fichinhas de catalogação da minha querida Biblioteca Pública de Belo Horizonte, nos anos 70. Além disto, as enciclopédias, antigamente impressas, como o meu "Novo Tesouro da Juventude", estão digitalizadas no ciberespaço e podem ser consultadas até mesmo quando estou em trânsito, basta abrir o site no meu celular. Os livros digitais podem ser lidos em dispositivos próprios, nos computadores ou tablets. As bibliotecas não precisam mais de espaço em nossas casas, precisam de capacidade de armazenamento nos nossos equipamentos ou de boa conexão, caso a consulta seja ao acervo online. Além disso, boa parte desta oferta está em língua inglesa e já não basta ler e escrever em português.


Recentemente, comprei mais uma estante para colocar os novos livros que adquiri no último mês, apesar de ter doado boa parte dos antigos. Não sei quando poderei viver sem minha biblioteca em papel ou quando deixarei de vez de ir a bibliotecas nas cidades que visito ou  resido. Não é preciso mais ir ao exterior para comprar um livro, ou encomendar a uma livraria local que trabalhe com importados, basta entrar em uma livraria estrangeira online, comprar diretamente e receber em poucos dias sua encomenda ou baixar imediatamente o livro adquirido. Nada como os seis meses de espera para receber meu exemplar importado de L'être et le néant.